quinta-feira, maio 10, 2007

O testamento de Calvino

A última vontade e testamento de João Calvino

Em nome de Deus, seja conhecido de todos os homens e por aqueles que estão presentes, que no dia 25 de Abril do ano de 1564, eu Peter Chenelat, cidadão e tabelião de Genebra, fui procurado pelo honrado João Calvino, ministro da Palavra da Deus na Igreja de Genebra, e burguês da dita Genebra, que estando doente e indisposto em corpo somente, declarou-me a sua intenção de fazer o seu testamento e declaração de sua última vontade, solicitando-me escreve-la conforme poderia por ele ser ditada e pronunciada no seu declarado desejo, tenho feito, e escrito-a sob a sua ordem, e de acordo com o que ele ditou e pronunciou, palavra por palavra, sem omitir ou, acrescentar nada – na forma como segue:

Em nome de Deus, eu João Calvino, ministro da Palavra de Deus, na Igreja de Genebra, sentindo estar em declínio [de saúde], por causa de diversos males, e que não posso senão pensar que isto seja da vontade de Deus para tirar-me em breve deste mundo, e sendo aconselhado a fazer e firmar por escrito o meu testamento e declaração da minha última vontade da forma como segue:
Em primeiro lugar, dou graças a Deus, não só porque teve compaixão de mim, uma pobre criatura sua, ao tirar-me do abismo da idolatria no qual eu estava atolado, de modo a guiar-me para a luz do seu evangelho e tornar-me um participante da doutrina da salvação, da qual eu era inteiramente indigno, e continuando em sua misericórdia, Ele tem me suportado em meio a muitos pecados e oscilações, que eram tais, que eu bem merecia ser rejeitado por Ele uma centena de vezes – mas pelo contrário, Ele estendeu-me a sua misericórdia para que eu e meu labor pudéssemos conduzir e anunciar a verdade do seu evangelho; protestando que é meu desejo viver e morrer nesta fé, a qual foi-me conferida, não possuindo outra esperança, nem refúgio, exceto em sua gratuita adoção, sobre a qual toda a minha salvação está fundamentada; abraçando a graça que Ele tem-me entregue, em nosso Senhor Jesus Cristo, e aceitando os méritos da sua morte e sofrimento, de modo que, por estes meios, todos os meus pecados estão sepultados; e orando-lhe para lavar-me e purificar-me pelo sangue deste grande Redentor, que foi derramado por nós, pobres pecadores, que eu possa comparecer diante de sua face, carregando a sua imagem tal como ela era.
Também protesto que tenho diligentemente, de acordo com a medida da graça que me é dada, ensinar a sua Palavra com pureza, tanto em meus sermões como em meus escritos, e expondo fielmente a Sagrada Escritura; e ainda, que em toda disputa que tive com os inimigos da verdade, nunca fiz uso de sutis artimanhas, nem de sofismas, senão que tenho me esforçado em agir honestamente ao manter o debate. Mas ai de mim! Pois, o desejo que tive, e o zelo, se podem assim ser chamados, foram tão frios e tão lentos que sinto que sou um devedor a tudo e em toda parte, e que isto, não foi por sua infinita bondade, toda afeição que tive poderia ser como fumaça, e não somente isto, que desde os favores que Ele me concedeu poderiam senão render-me maior culpa; de modo que o meu único recurso é este, que sendo Pai de misericórdia, Ele me apresentará diante do Pai, sendo eu um tão miserável pecador. Além disso, desejo que o meu corpo, após o meu falecimento, seja enterrado conforme o modo usual, para a espera do dia da bendita ressurreição.
A respeito dos poucos bens terrenos que Deus me deu aqui para dispor-los, eu nomeio e indico como o meu único herdeiro, meu amado irmão Antony Calvino, mas somente como honrado herdeiro, concedendo-lhe o direito de possuir nada mais, senão a taça que ganhei de Monsieur de Varennes,[1] e suplico-lhe que fique satisfeito com isto, como eu estou bem certo de que ele será, pois ele sabe que fiz isto por nenhuma outra razão, senão que o pouco que deixo possa permanecer para os seus filhos. Em seguida, deixo para a Academia dez moedas de cinco xelins, e para o tesouro dos pobres estrangeiros a mesma soma.[2] Igualmente, para Jane, filha de Charles Costan e minha meia-irmã,[3] por assim dizer, por parte de pai, a soma de dez moedas de cinco xelins; e ainda, para cada um de meus sobrinhos, Samuel e João, filhos de meu supracitado irmão,[4] quarenta moedas de cinco xelins; e para cada uma de minhas sobrinhas, Anne, Susannah e Dorothy deixo trinta moedas de cinco xelins. Também para o meu sobrinho David e seu irmão, pois ele tem sido imprudente e inseguro, deixo-lhe, porém, vinte e cinco moedas de cinco xelins como uma punição.[5] Este é o total de todos os bens que Deus me deu, de acordo com o que fui capaz de avaliar e estima-los, quer sejam em livros,[6] mobília,[7] objetos de prata, ou qualquer outra coisa. De qualquer modo, é possível que o resultado da venda remonte a alguma coisa mais, entendo que poderia ser distribuído entre meus citados sobrinhos e sobrinhas, sem excluir David, se Deus tiver lhe concedido graça para ser mais moderado e sério. Mas, creio que a respeito deste assunto não haverá dificuldade, especialmente quanto as minhas dívidas que serão pagas, como tenho encarregado a meu irmão em quem confio, nomeando-o executor deste testamento junto ao respeitável Laurence de Normandie, concedendo-lhes poderes e autoridade para fazer um inventário sem qualquer forma judicial, e negociar minha mobília para levantar dinheiro dela de modo a consumar as orientações deste testamento como ele está aqui firmado por escrito, neste dia 25 de Abril de 1564.
Testemunho com a minha mão,
JOÃO CALVINO.

Após ser escrito como está acima, no mesmo instante o citado respeitável Calvino subscreveu com a sua usual assinatura o registro do citado testamento. E no dia seguinte, que foi 26 do mês de Abril, o citado respeitável Calvino chamou pela uma segunda vez junto aos respeitáveis Theodore Beza, Raymond Chauvet, Michael Cop, Louis Enoch, Nicholas Coladon, Jacques Desbordes, ministros da Palavra de Deus nesta igreja, e o respeitável Henry Seringer, professor de letras, todos os burgueses de Genebra, na presença de quem ele declarou que tinha determinado-me escrever sob ele, e com o seu ditado, o citado testamento na forma, e com as mesmas palavras que estão acima, dizendo-me para que o lesse em alta voz na presença das ditas testemunhas convidadas para este propósito, o que eu fiz com uma voz audível, e palavra por palavra. Depois desta leitura, ele declarou que esta era a sua vontade e último disposição, desejando que pudesse ser realizado. E assim, para maior confirmação do mesmo, solicitou as pessoas supracitadas que também assinassem-na comigo, em Genebra, na rua chamada Des chanoines, na residência do citado testador. Com fé disto, e para servir por suficiente prova, tenho redigido na forma como acima está apresentado o presente testamento, de modo a expedi-lo a quem o é de direito, sob o comum selo dos nossos mais honrados senhores e superiores e com a minha usual assinatura.
Testemunho com a minha mão,
P. CHENELAT.

Notas:
[1] Nota do editor: Guilhaume de Trie, Lorde de Varennes. Ele morreu em 1562, deixando a guarda de seus filhos à Calvino.
[2] Nota do tradutor: Este “tesouro dos pobres estrangeiros” era um fundo de reserva que a cidade de Genebra tinha para socorrer os refugiados, que por motivos políticos ou teológicos eram expulsos de suas pátrias, e procuravam acolhida nesta cidade. Durante o retorno de João Calvino para Genebra esta cidade em pouco tempo tornou-se não somente um local de referência para a Reforma teológica, mas também para o pensamento econômico, político e social. O próprio Calvino sabia o que era andar errante como um “pobre estrangeiro”.
[3] Nota do editor: Mary, filha de um segundo casamento de Gérard Calvino. Ela deixou Noyon em 1536, para acompanhar os seus irmãos, João e Antony para a Suíça.
[4] Nota do editor: Anthony Calvino teve com a sua primeira esposa dois filhos, Samuel e Davi, e duas filhas, Anne e Susannah; com a segunda, um filho, João, que morreu sem deixar posteridade em 1601, e três filhas, Dorothy, Judith e Mary, que morreram da praga em 1574.
[5] Nota do editor: Este David, bem como o seu irmão Samuel, foram deserdados por Antony Calvino, por causa de sua “desobediência”.
[6] Nota do editor: Os livros de Calvino foram comprados após a sua morte pelo lorde, como podemos ver nos registros do concílio do dia 8 de Julho de 1564: “resolvido comprar para a república os tais livros do senhor Calvino, como o senhor Beza melhor julgar.”
[7] Nota do editor: Uma parte da mobília pertencia a república de Genebra, como é provado pelo inventário preservado nos arquivos (No. 1426). Extraímos desta lista os artigos emprestados para o reformador, do dia 27 de Dezembro de 1548, e devolvidos ao lorde após a sua morte.

Extraído de Letters of John Calvin: Select from the Bonnet Edition with an introductory biographical sketch (Edinburgh, The Banner of Truth Trust, 1980), pp. 249-253.

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